Amor de Filho Único

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Amor de Filho Único

Rio de Janeiro Urca

Por Eugenio Goussinsky

 

Mãe de filho único é assim mesmo. Tem um coração em dobro. Está em dois lugares ao mesmo tempo. Vive por ela e por ele. Nelly era assim em 1987, quando a vi pela primeira vez, com seu filho Tarcísio, meu amigo.

 

 

Filha de militar, posições firmes, mas sempre generosa, olhar doce, fala delicada. Apaixonada pelo Rio e principalmente pela Urca e seu estilo bucólico, com prédios tranquilos e sobrados. Ela convivia com a tradicional paisagem que desembocava na beleza da Praia Vermelha, cercada de montanhas, pássaros, maresia e instituições militares.

 

 

Abençoada, à distância, pelo Cristo Redentor, figura que sempre a acompanhou, para seu enorme orgulho. E do alto do Cosme Velho, onde as trilhas se perdem em meio ao verde, o Cristo observava, silencioso e imponente, o amor incondicional de Nelly pelo seu filho.

 

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Mas a maior característica da mãe de filho único é que, por amar tanto o filho, ela ama também os amigos do filho. Simplesmente, por serem amigos dele. Isso a elevava a um grau muito nobre na aceitação da diversidade. Não importava a cor, a religião, o sexo.

 

 

Filho único que vive com a mãe também desenvolve certas características. Tem ideias únicas. Uma identidade única. Escolhas, desejos, visões de mundo, caminhos, estilo de vida únicos. Essa maneira especial com que foi criado deu ao Tarcísio este presente.

 

 

Acho que Tarcísio se tornou vascaíno por isso. Não foi por causa da grande torcida do clube, mas pela maneira independente com a qual o Vasco sempre se apresentou. Clube de colônia, muitas vezes era prejudicado por decisões de entidades e até dos rivais.

 

 

O apego da mãe, acredito eu, gerou em Tarcísio essa busca da independência. Levando, claro, a Nelly sempre com ele. De forma subjetiva ou concreta. Ou ela não o acompanhou, topando tudo, até Brasília apenas para ver Vasco e Sobradinho?

 

 

Tarcísio é tão independente que ele mesmo, por anos, manteve uma torcida só dele: Tarcísio Vascão. Com insistência, sempre com um ritual antes dos jogos, chegava mais cedo aos estádios só para colocar sua faixa entre as das organizadas.

 

Leia mais: “Quando Sócrates foi o melhor do mundo”

 

Vi o Tarcísio pela primeira vez em 1987. Fui à casa dele por termos amigos em comum. Ele me recebeu de braços abertos e nos levou ao jogo entre Vasco e Fluminense, na primeira vez que fui ao Maracanã.

 

 

Mas não foi só ao estádio que ele me apresentou. Conheci, por seu intermédio, nuances do futebol e do Rio que só ele via. Sempre com um olhar preciso. O tal olhar único. Ouvi dele uma frase que pouco conhecia: “O Flu sempre deu trabalho ao Vasco.”

 

Ou detalhes da carreira de Roberto, estratégias pouco conhecidas de Eurico, segredos escondidos nos meandros do Rio de Janeiro. Sou um privilegiado por ter conhecido o Rio pelas mãos de um apaixonado pela cidade. À sua maneira.

 

Vi em Tarcísio um irmão de era. Crescemos em cidades diferentes, mas com paixões semelhantes. Pelo futebol, pela cultura, pelos nossos clubes, pela seleção. Minha sensibilidade se identificou com a dele. Também somos apegados àquilo com que nos envolvemos: pessoas, assuntos, cursos, objetivos.

 

Um dia, ele me falou que gostava da música Owner of a Lonely Heart, do Yes. Fascinou-me pensar que, quando ele cresceu com essa música no Rio, ela marcava minha adolescência também em São Paulo.

 

Naquela e em outras ocasiões em que ele me recebeu, vieram novos aprendizados. Em 1989, vivenciamos juntos o drama do Maracanã, quando Rojas se feriu propositalmente.

 

A sensação de estarmos imersos naquela aventura, em meio à multidão, ao lado dos amigos, na churrascaria depois do jogo, era de puro acolhimento. E Nelly tinha muita responsabilidade nisso.

 

Ela compartilhava todos os acontecimentos, estava atenta às notícias, tinha suas opiniões e, mais do que tudo, já sabia o horário em que iríamos chegar. Deixava tudo preparado para o nosso conforto.

 

Anos depois, Tarcísio, casado e já médico, foi morar em Ribeirão Preto. Nelly ia sempre para lá, ver o filho, a nora e os dois netos. Se a convivência não foi diária, foi muito intensa e frequente. Tarcísio, acredito eu, se afastou do Rio, mas nunca deixou de levar a cidade, e a mãe, que de lá não saía, com ele.

 

No último mês de dezembro, no entanto, ele praticamente passou na sua cidade maravilhosa. Em um hospital da Barra, onde ela foi internada. Ele se hospedou em um hotel ao lado e via a mãe todos os dias. Pelo menos três vezes.

 

Conversavam, colocavam o papo em dia. Como na infância e na adolescência. Na última noite de Nelly, ele dormiu no quarto, acariciou seu rosto, reviveu momentos de menino, como na viagem a Sobradinho.

 

Na tarde seguinte, com o coração pesado, voltou para o apartamento na Urca, acompanhado pela família e por toda aquela lembrança viva.

 

De lá, me mandou uma mensagem de fim de ano. “A vida passa tão rápido e a gente precisa ficar mais perto.”

 

E, em poucos minutos, me deu mais algumas informações únicas: Eurico foi quem criou a Copa do Brasil, a torcida do Vasco fechava o Rebouças depois dos títulos. E lembrou da mãe e dos encontros dela com Eurico, também da Urca, e Roberto Carlos, na igreja do bairro.

 

Depois da Copa de 1994, voltei, com o nosso amigo em comum, dos Estados Unidos. A passagem estava errada e desembarcamos no Rio, em vez de São Paulo.

 

Onde ficamos? Na casa da Nelly. Conversamos sobre a Copa, ela nos deu atenção, colocou o teipe do jogo, sempre bem informada. Tarcísio, que não pôde ir àquela Copa, não estava. Cumpria seu serviço no Exército.

 

No aeroporto, porém, quando íamos pegar a ponte aérea, de repente ele surgiu, esbaforido, na fila de embarque.

 

Pegou um trânsito enorme, atravessou a cidade apenas para um abraço de até logo. Já faz 30 anos e vieram muitos outros abraços. Mas nunca me esqueço do que pensei naquele momento, em especial: “Só podia ser filho da Nelly.”

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