Olhando do carro a praça ampla em que a avenida contornava, ele ouviu a música por completo, como se aquela vista e o som do rádio tivessem arrefecido a sua fúria e dado espaço para a sua percepção.
O acompanhamento do saxofone com guitarra e bateria se tornou um prolongamento da voz do cantor, já na parte final da obra.
Não haveria mais parte cantada, mas as palavras ainda ecoavam no trecho só com instrumentos, como se este fosse a memória viva de algo que ainda sussurrava na mente dos ouvintes.
Pensou que uma performance de um grupo musical é a melhor definição de trabalho em equipe.
Todos existem e se perpetuam em suas potencialidades, quando companheiros dão prosseguimento a alguma etapa, com a mesma sensibilidade daquele que participava da etapa anterior, a ponto de dar a impressão de que ele ainda participa concretamente.
E de etapa anterior a etapa anterior, ele foi comparando aquele instante a todos os outros que compuseram a música de sua vida.
Pessoas foram se multiplicando em flashes em sua mente, os amigos de outrora, os de infância, os vizinhos, as risadas na rua, as brincadeiras de esconde-esconde em frente ao jardim de casa, a esperança ao olhar da janela do quarto as estrelas, as viagens para a praia, o medo dos outros, a voz de seu pai, o aconchego da mãe, o carinho da avó, o susto do nascimento.
Era como se todos esses personagens reais fossem também os instrumentos que davam continuidade ao seu canto vital, numa composição feita de expectativas, alegrias, realidades que se misturavam, transformando o que parecia caótico e assustador em harmônico.
E a música foi se insinuando para antes de sua própria existência, mostrando que, de alguma forma, ele já existia antes de nascer, como todas as pessoas, em forma de energia ou sei lá o quê, mas dando continuidade a uma linha melódica infinita, que foi se prologando para o passado da mesma maneira que se desbrava pelo futuro, apresentando literalmente a relatividade do tempo.
Passeou, ainda em forma de melodia, pelos tempos imperiais, ultrapassando fronteiras do Descobrimento, do Velho Continente, sobrevoando a Idade Média e vendo várias pessoas reunidas, em feiras, artistas pintando musas inspiradoras, escrevendo obras-primas com suas penas sob a luz esquálida de uma vela no quartinho solitário.
Continuou, visitando o Império Romano, se deparando com a Antiguidade, tentando acalmar a ira dos assírios, a ânsia dos fenícios, a ganância dos babilônicos, se sintonizando com a generosidade dos persas e as conquistas dos macedônicos, ressoando mais alto do que os gritos de horror e simpatizando com cada pequeno gesto de amor, que se perpetuou, na calada da noite nos acampamentos.
Manteve-se íntegra e afinada na primeira onda a deslizar na praia, na primeira árvore a balançar sob o vento, no primeiro toque do mar na pedra, nos primeiros coaxar, rugido e uivo atravessando campos, no primeiro pôr do sol, no primeiro sorriso, no primeiro beijo, na frieza da glaciação, no carinho de um dinossauro com sua cria, no mesozoico, no proterozoico, no breu que acompanhou a origem de tudo.
Somente quando chegou ao instante antes do início, símbolo maior de nossas incertezas e fragilidades, ela, a música flutuante, foi sumindo, sumindo, gradativamente.
Mas, incrível, se mantendo pelo cosmos, acima do que a lógica apontaria, presente de outra maneira, em forma de energia, numa lembrança que insistia em estar presente até quando o universo reinava em silêncio e já era eterno esquecimento.