Por Eugenio Goussinsky
Há quem diga que a vida de banqueiro é fácil. Ele não achava. Era bilionário, mas diante dos gráficos na tela, a tensão era permanente. Havia dias em que suava de nervoso, mais por orgulho do que por qualquer outra coisa. A vida estava feita. Se falisse, manteria os bilhões em contas espalhadas pelo mundo. Ainda assim, não conseguia se livrar da preocupação.
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Apostara pesado num swap prefixado, na confiança de que o Banco Central manteria a Selic. Mas boatos de uma alta inesperada ganhavam força, e o mercado começava a precificar o pânico. Ainda não havia prejuízo real, só a ameaça. Mas ele sentia o cheiro do prejuízo e odiava. Sabia que podia perder bilhões. O dinheiro não era o problema. Era a ambição. Era o banco, mais uma vez, ousando desafiar seu criador. Bancos às vezes desafiam mais do que os filhos.
Sentado diante da mesa, apenas analisava as variantes. No monitor ultrawide da mesa de operações, a curva da Selic serpenteava em vermelho sobre o fundo preto. Até que tocou seu smartphone. Quase não recebia mais ligações. Quando ocorriam, era algo urgente. Um investidor da Goldman Sachs pedindo para segurar a posição por mais alguns dias. Ou alguém de Brasília, com alguma informação sigilosa.
Dessa vez, porém, era de um número fixo. Fazia anos que não se comunicava por um aparelho daqueles. Mais em desuso do que o overnight. Mas, entre a infinidade de números com que lidava todo dia, sentiu algo especial naquela sequência: três, dois, oito, quatro, nove, sete. Não precisou ouvir a voz da mãe para saber de quem era. Era o número da casa da avó.
Num sopro, sua mente se desviou para outro mundo. Não havia mais cifras, apenas o tempo. A tela à sua frente ganhou outra função. Em sua imaginação, mostrava imagens que não via há décadas. Da época em que era carinhoso, bondoso, sensível. Quando, todo domingo, ia à casa dela com os primos, pais e irmãos. Comiam pizza juntos, entre brincadeiras e aquela estranha sensação de fim de festa, o anoitecer do domingo ao som do Fantástico.
As conversas da avó com os pais, suas palavras afáveis, a insistência para que comessem mais um pedaço de muçarela, eram uma maneira de amenizar o medo e a tristeza misturados à ideia da segunda-feira. Aqueles momentos eram calmantes diante da incerteza. Quem dera pudesse, hoje, retomar aquela sensação de aconchego em meio às operações financeiras.
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Também passavam temporadas no Guarujá. Antes de ele comprar um apartamento para a família, as férias eram verdadeiras festas. Tardes inteiras jogando futebol, botão, pedalando de norte a sul da cidade, com o mar e o horizonte ao fundo.
Lembrava do tombo no Morro do Maluf. A bicicleta rodopiou e ele caiu com tudo no asfalto, na curva de entrada do morro. Os primos o levaram às pressas para casa. A avó, agoniada, cuidou das feridas com uma ternura que ele nunca havia experimentado antes. Ficou dias vigiando para que ele limpasse tudo direito.
Tudo isso veio de repente, antes da conversa. Foi então que ouviu da mãe a notícia: “Vim para cá às pressas, filho, sem celular. Querido, a vovó acabou de falecer.”
Depois que virou banqueiro, não conseguiu manter o ritmo dos encontros familiares. Afastou-se. Precisava estar atento quase o tempo inteiro. Não se queixava. Mas no cemitério, no dia seguinte, não conseguia mais pensar no risco, na adrenalina, na ameaça de perder bilhões. Apenas observava. A chegada dos primos, as conversas em tom baixo ao redor do féretro. Ouvia o pio estridente do quero-quero na árvore lá fora. Contemplava, pela janela, as nuvens que tomavam o céu, deixando apenas uma única brecha para um raio de sol.
O mundo seguia seu rumo. Assim como os negócios. O velório já estava acabando. Ele então foi sozinho até a frente. Sabia que ela estava ali, encoberta pela madeira escura e lisa. Acariciou, como se fossem os braços dela. Sentiu que não podia tocá-la.
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Tão perto, tão longe. Mas não era como a lamentação em operações fracassadas que por um tris não renderam bilhões. Era um sentimento infinito. E os números, por maiores que sejam, são finitos. Só restou a ele chorar em silêncio e ver uma gota que caíra de seu rosto marcar aquela superfície, como um carimbo eterno. Ele chorou tanto e nem se deu conta de quanto valiam aquelas lágrimas.