A verdade no olhar de um cão

Categoria:

A verdade no olhar de um cão

Observo meu cão andando na praça e vejo a sinceridade em cada um de seus atos. Ele caminha pelos arbustos em busca de rastro, de cheiros, de colocar em ação sua identidade de caçador. Manso, dócil, mas caçador.
Então o chamo e seu olhar volumoso se mistura ao perfume das árvores, interage com a luz dos postes, penetra na escuridão do bosque e chega até mim em forma de verdade.
Posso perceber a pureza de seu espírito quando ele não esconde seu desejo de pegar minha comida.
Quando ele sente ciúmes de minhas brincadeiras com outras pessoas. Até quando ele prefere a companhia de minha esposa do que a minha, virando-se de repente, com seu corpanzil dourado, em direção a ela sem nem ao menos pedir licença.
E me deixando lá, escancarando-me a sua verdade, para que eu lide com a minha: a de, como todos nós, sermos sociais, mas solitários.
Ele me ajuda a ir aprendendo, sem saber, a decifrar, pelo menos em alguns momentos, alguma verdade, a partir dessa experiência, presente no ar. Muitas vezes saio frustrado por não conseguir encontrá-la em meio a tantos mistérios invisíveis.
Só sei que a verdade, aquela do olhar do meu cão, é múltipla em suas formas, mas única em seu conteúdo.
Pode estar em uma festa ou em um funeral, nas palavras de um ladrão ou na de um santo. Aparece de diversas maneiras, sem um padrão definido. É fugidia, esquiva, aparentemente fácil de ser escondida. Mas, flutuando em seu ritmo, acima do tempo, ela sempre surge. Em instantes ou em milênios.
Às vezes em uma frase, outras em um gesto, em um grito ou então em um sussurro. Ela se apresenta infinitamente forte, implacável, mesmo parecendo ser, muitas vezes, frágil. E às vezes é, como um cristal. Uma verdade cristalina.
Em todos os momentos, no entanto, ela está presente. Basta querermos vê-la. De verdade.
Encontrei-a, outro dia, em uma avenida, dividida, em suas mãos de direção, por um canteiro, onde sem-teto acampam.
Naquela avenida, de dentro do meu carro, parado no trânsito, vi, no gramado também composto por algumas árvores, um homem muito pobre.
Ele estava sentado em um sofá a céu aberto, na companhia de seu pequeno vira-lata de pelos escuros e peito acinzentado.
Serelepe, sentado ao lado no sofá, o bichinho mordia uma velha bola de borracha, exibindo-se para o seu dono e não escondendo a alegria a cada momento que ele tentava tirá-la de sua boca.
A admiração do homem, com uma calça amarrotada, de chinelos, blusa bege desabotoada e suja, era a mesma que a minha nesta interação com o cão.
E ele passou a acariciar sua cabecinha lisa, com uma curva perfeita que tornava aqueles olhinhos ainda mais sublimes, volumosos e verdadeiros.
Estava anoitecendo. O homem olhou para o céu alaranjado, talvez inebriado pela ressaca, como se o comparasse ao olhar de seu cãozinho.
Imaginei-me abrindo a janela e, em tom de desafio, oferecendo R$ 1 mil pelo animalzinho.
E o delírio foi crescendo. Vi-me, em pensamento, ofertando R$ 10 mil ao morador de rua.
Ao seu lado, se espalhavam embalagens de biscoito e uma de plástico vazia, comida que certamente ele recebeu de algum motorista.
Ousei, em meu desafio mental, aumentar a proposta para R$ 100 mil. Para R$ 10 milhões. R$ 10 milhões pelo cachorrinho. Seria uma quantia para revolucionar a vida.
Ele aceitaria? Da maneira com que acariciava o pequeno, vi uma sobreposição de verdades. Embalada pela ternura, aquela cena tinha uma verdade que superava a verdade do abandono social, da perversidade humana, da busca insana pelo dinheiro. Mil vezes não. “Ele não aceitaria”, pensei.
Mas o farol abriu. Acelerei, já decifrando, por todo aquele clima, a resposta que ouviria dele. Nada falei. Toda aquela certeza ficou na minha imaginação. A verdade também é silenciosa.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe nas redes sociais

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

Posts recentes

Artigos Relacionados

Posts mais comentados

LL

ASSINE A NEWSLETTER

Preencha corretamente os campos abaixo e receba todo mês nossos conteúdos.