Lambidas do vento

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Lambidas do vento

Doggy golden lindo

Ele costumava ficar sentado no meio da praça, à noite, relaxado com o vento em sua face. Seus lindos pelos dourados se movimentavam lentamente. No mesmo ritmo tranquilo das folhas nas inúmeras árvores do local.

 

Podia-se perceber que ele era uma força da natureza só com seus latidos esporádicos. Vinham de tão dentro dele, que se impunham sobre tudo. Sobre o silêncio, sobre minha pressa, sobre os projetos analisados durante o passeio. E ecoavam pelos prédios como uma ordem dos céus.

 

 

“O que você quer, Doggy, o que foi, menino?” “Lindo”, “Fofão” “Cany”… e então me derretia em repetir os nomes que brotavam de meu inconsciente. Como num impulso primitivo, revelavam todo o encanto pelo qual eu era tomado com a presença dele.

 

Era minha pergunta, que eu fazia com o mesmo carinho com que o conduzia. Ou melhor, era conduzido por ele durante todo o trajeto.

 

O carisma e a presença sem iguais, naquele corpo volumoso de golden, impactavam qualquer um que passasse por perto. Ele se impunha, de maneira implacável, com sua profunda pureza, digna de Platon Karataev, de Tolstói.

 

Agachava-me para tirar uma selfie ao seu lado e não tinha jeito. Eu não parava de receber lambidas dengosas.

 

 

Suas passadas eram convictas e tranquilas. Quando eu o soltava, com o tempo, aprendeu a obedecer. No início, saía correndo quando via um outro cachorro ou alguma pista de petisco.

 

Desfilávamos nosso vínculo afetivo com o rigor de um relógio. Por ruas com nome de filósofos e artistas. Em um clima de prazeroso mistério, de busca do sentido da vida, com a lua se insinuando por de trás de nuvens e prédios.

 

Três vezes por dia, por inúmeros trajetos, todos eles impregnados em minha alma como mapas das minhas reflexões, do meu próprio amadurecimento ao aprender a servir, respeitar, ter paciência, cuidar.

 

Inspirava-me naqueles momentos para crescer profissionalmente, para ter ideias, construir histórias, encontrar soluções.

 

 

Caminhávamos pela praça em diagonal recheada de árvores com pássaros cantantes. Nos canteiros da avenida.

 

Na pracinha do outro lado da Malebranche, em que ele deslizava ciente do meu receio em não se aproximar da rua movimentada.

 

No parcão de areia lá de cima da Giordano Bruno, que ele fazia questão de me levar e subir a a enorme área que mais parece um parque. No parcão de baixo, rodeado de um grande espaço que dava para um gramado com arbustos que ele adorava farejar. E sentir o vento.

 

Na padaria, quando ficava na parte de espera dos cachorros, já acostumado com meus cafés e minhas leituras.

 

 

Pelas manhãs de céu azul, sua pelagem dourada combinava com os raios de sol. Eu gostava que ele tomasse sol, me preocupava, assim como quantas vezes ele havia feito cocô e xixi. Fazia em doses, enquanto passeava e farejava as plantas do bairro arborizado.

 

Cada época tinha sua música especial. Que combinava com o momento. Por causa de uma palavra ou estilo. Eu ouvia no aparelho e ele parecia se contagiar com o ritmo, com a melodia, em uma ligação silenciosa que captava sons interiores e exteriores.

 

 

Ao meu Doggy associo Flowers (Miley Cyrus); Peaches (Justin Bieber); Leave The Door Open (Bruno Mars); a sensacional Snap (Rosa Linn) e sua versão com toque italiano com Alfa; a doçura de Idiota (Jão); a tocante Girls Go Wild (LP) que até me fez dançar na praça vazia, enquanto ele observava a noite; My Universe (Coldplay e BTS); I don´t Wanna Know (the Weeknd-Creepin); As It Was (Harry Stiles), entre tantas.

 

Na pandemia, passeávamos pela praça Kant, tranquila e cheia de árvores perfumadas. Eu olhava em direção à cidade de Santos, com a anuência canina, a imaginar minha infância e, como naquela época, ouvindo The Winner Takes It All. O vencedor leva tudo.

 

 

Era o que eu sonhava naqueles tempos longínquos. Sonho que, naqueles momentos com meu cão, voltava a se insinuar, na busca de um dia ter a sensação definitiva de vencedor.

 

 

Depois de anos na sua companhia, o perdi por essas bandas. Por causa de uma pancreatite. Nossas idas ao veterinário, seu olhar sereno, sentado no banco de trás, apenas se sentindo protegido. Já era o bastante. Chegamos a ir até a Raposo Tavares para descobrir o que ele tinha.

 

 

 

O cão é o melhor amigo do homem, por extrair dele o melhor de sua humanidade. A doação, o cuidado, o respeito. A sensação de não ser maior do que aquele que está ao seu lado. A segurança pelo afeto. A verdade no olhar.

 

Parei então de passear por aqueles intermináveis quarteirões, que construíram o nosso mundo.

 

Somente depois de um tempo, passei novamente a me sentir acompanhado. Nos poucos metros que ando, pela mesma rua, e olho aquela praça Kant, ainda me alimento de nossos passeios.

 

 

Basta sentir o vento no meu rosto. Ele me toca e acaricia, em forma de lambida.

 

 

The Winner Takes it All, me sinto vencedor. Sorrio com lágrimas e respiro com gratidão, por tudo que passamos.

 

 

Que agora se espalha pelo sol, pela noite, pelas árvores dos nossos percursos, em cada centímetro que percorremos. Está na sua doçura eterna, nos olhos profundos e volumosos que lembravam o universo, nas músicas que ouvi, nas plantas que ele cheirou. Estampado no ar em forma de amor.

 

Em cada lambida do vento que surge de repente.

 

Para me lembrar que, para sempre, vou sentir a sua presença. Neste exato momento, por exemplo, a sinto. Em forma de felizsaudade.

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